suportar a vaziez como um faquir que come sua própria fome
19.6.14
14.6.14
VESTIDO DE PAPEL
"Vivo voando, voando, não passo de louca mansa
Cheia de tesão por dentro, se rola na face o pranto
Deixo que role e pronto, meus males eu mesma espanto"
Cheia de tesão por dentro, se rola na face o pranto
Deixo que role e pronto, meus males eu mesma espanto"
não, não, nenhum jogo está perdido
ainda persigo uns lances
percebo uns transes
tramo uns passes
nessa peleja prossigo :)
em meu vestido de papel
gM
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Itamar Assumpção,
Peter Clark
10.6.14
8.6.14
“Um amigo meu,
médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança
quer: nela o ser humano no berço mesmo já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha
primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de
algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de
graça.
Se no berço experimentei esta fome humana,
ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto
de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela
pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome
de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de
revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho
um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a
escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pele menos eu pertencia um pouco
a mim mesma. O que é um fac-símile triste.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi
o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de ‘solidão de
não pertencer’ começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é
o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações?
Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é
por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar
àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes.
E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente
todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos ― e não ter a quem
dizer: tome, é seu, abra-o! não querendo me ver em situações patéticas e, por
uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho
com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de
ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a
vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força ― eu quero
pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma
coisa.
Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por
exemplo, a meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente
a ponto de ser brasileira. E eu que, muito sinceramente, jamais desejei ou
desejaria a popularidade ― sou individualista demais para que eu pudesse
suportar a invasão de que uma pessoa popular é vítima ―, eu, que não quero a popularidade,
sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por
orgulho, nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por
motivos que não têm a ver com literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou
uma intelectual. Feliz apenas por ‘fazer parte’.
Quase consigo me visualizar no berço, quase
consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar
pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci
e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz
de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição
bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma
doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não
curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma
missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma
guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido
em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria
que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe.
Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a
alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como
desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
Clarice Lispector: A descoberta do mundo (crônica publicada em 15 de junho de 1968)
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