28.6.08

berliMaceió

O TAL DE VOCO DO VERBO VISUAL

Ricardo Domeneck

Falar sobre a tal separação entre poesia e música, oralidade e escrita, que teria ocorrido gradual e irreversivelmente após o desaparecimento das estruturas sociais da cultura do amor cortês, manifestando-se nas cortes occitanas (provençais e catalãs) dos séculos XI ao XIII (tempo em que a poesia ainda era uma manifestação comunitária), é moeda corrente e aceita no mercado literário, ainda que uma reflexão sobre suas "causeqüências" possa levar-nos a uma tateante conclusão-tentativa em forma de ensaio, de que tal assertiva não faz muito sentido, especialmente no Brasil, onde a poesia oral resistiu e frutificou-se mesmo em meio a uma cultura oficial que privilegiava tão-somente a manifestação poética que almejava à Literatura, este fenômeno recente na História dos humanos, que se impôs com força entre os séculos XVI e XVIII, gerando o que nós hoje chamamos de Poesia/Literatura na virada do século XVIII/XIX, ainda que se fale a respeito dela como se fosse a noção que Homero e Safo tinham da poesia.

Assim, ainda que nosso primeiro grande poeta, o senhor Gregório de Matos, ainda pudera experimentar esta união, instaurou-se com força entre nós a noção literária neo-clássica do século XVIII em diante, que tentou separar escrita e oralidade, poesia e música, em parâmetros deturpados que aqueles humanos do tal de "Renascenso" de séculos atrás acreditavam serem "valores clássicos", sem, no entanto, o embasamento e conhecimento históricos, etnográficos e lingüísticos que nós hoje temos do contexto sócio-cultural da Antigüidade. Ainda hoje, estes "parâmetros clássicos" são guiados por racismo e colonialismo ao discutirem a relação entre escrita e oralidade, sem entenderem as constriçoes específicas de cada uma como manifestação poética, privilegiando a escrita (e, assim, a Literatura), e impedindo-nos de conhecer em sua pluralidade tanto a nossa poesia como a de outras culturas e épocas.

É com alegria que podemos observar a maneira como alguns poetas brasileiros estão passando a aproveitar-se da era digital para retornarem a um trabalho pluralista com a poesia, experimentando com vídeo e poesia sonora, gravando leituras e performances, colaborando com músicos profissionais. Nada há de "vanguardismo" neste fenômeno, mas do testemunhar do nascimento de suportes tecnológicos que permitem ao poeta RETORNAR a características dormentes do fazer poético. Num país que nunca deixou de contar com excelentes trovadores e poetas-compositores (Noel Rosa, Cartola, Tom Jobim, Itamar Assumpção, Walter Franco, etc), é muito saudável que poetas-escritores também experimentem com a possibilidade de ver a poesia como algo mais que uma franquia da Literatura.

Insisto: poesia não é uma parte da literatura, mas é a literatura que é apenas uma parte da poesia. Quem achar que isso é picuinha, sugiro que medite por pelo menos alguns segundos sobre as implicaçoes desta idéia.

No pós-guerra, quando uma série de poetas internacionais retomaram as pesquisas sonoras, fonéticas, orais do início do século XX (ligando-o em arco aos muitos séculos e áreas da História e Geografia da Poesia), tivemos no Brasil as experiências de Augusto de Campos:

Cidade City Cité, 1963 > Paris, 3 Juillet 1985 - Augusto de Campos

(Augusto de Campos: "Cidade City Cité")

Após o surgimento dos movimentos brasileiros de retomada das vanguardas, houve as intervençoes do poeta brasileiro Philadelpho Menezes (1960 - 2000), que se entregara a um trabalho de divulgação do conceito de polipoesia, iniciado por Enzo Minarelli, e que teve um papel muito importante na abertura de picadas na mata-literária brasileira, recebendo sobre si muitos dos ataques inevitáveis do início de todo processo que, para apagar fronteiras, muitas vezes tem que cavar trincheiras:

Poema não música - Philadelpho Menezes

(Philadelpho Menezes, "Poema Não Música")

Durante a década de 90, o nome mais associado a esta pluralidade poética foi o de Arnaldo Antunes, que possui hoje um dos mais consistentes conjuntos de obra em obras da poesia brasileira contemporânea. Seu trabalho visual e sonoro é (junto, talvez, com o de André Vallias e Lenora de Barros, mais eminentemente visual/digital, e o de Ricardo Aleixo) a maior referência internacional da poesia experimental brasileira, em parte por seu papel e projeção como "músico":

O mar - Arnaldo Antunes

(Arnaldo Antunes, "O Mar")

Ricardo Aleixo é o poeta que mais tem se dedicado a este processo pluralizante da poesia no país. Enquanto Arnaldo Antunes se fez "praticante" desta pluralidade, publicando livros e preparando vídeos e peças sonoras, Aleixo parece assumir uma responsabilidade até mesmo educacional-interventora no quadro, e a polipoesia/pluripoesia/poesia-sonora passou a contar hoje com o trabalho impecável de divulgação, experimentação e difusão do poeta belorizontino:

Real irreal - Ricardo Aleixo

(Ricardo Aleixo, "Real irreal")

Entre os mais jovens, esta pluralidade e pesquisa sonora tem aportado de várias maneiras. Assim como o trabalho sonoro transita por um par de "Ricardos" (Ricardo Chacal e Ricardo Aleixo, após os quais me incluo com humildade), há hoje o trabalho sonoro e visual, respectivamente, de dois "Marcelos": Marcelo Sahea e Marcelo Noah, além do trabalho em vídeo, congregando o visual e o sonoro, de Henrique Dídimo.

O trânsito entre oralidade e escrita conta ainda com aqueles que nos últimos tempos passaram a participar cada vez mais ativamente de leituras públicas de seus trabalhos escritos, assim como passaram a colaborar com músicos para a oralização de seus poemas. O caso mais recente foi o da poeta carioca Marília Garcia, que colaborou com o compostior Rodolfo Caesar para a oralização/sonorização de seu texto "Aquário". Levando o conceito de "walkman/flaneur/viajante" de seu livro "20 poemas para o seu walkman" a outras implicaçoes, Marília Garcia e Rodolfo Caesar caminharam pelas ruas do Rio de Janeiro, enquanto a poeta oralizava seu texto e o compositor captava os sons do ambiente-rua carioca: ônibus, carros, pessoas, mais tarde retrabalhando estas sonoridades:

Aquario - Marilia Garcia & Rodolfo Caesar

(Marília Garcia e Rodolfo Caesar, "Aquário")

Esta não é uma tentativa de estabelecer nomes para um possível cânone da poesia sonora brasileira. É feito no espírito de abertura e pluralização, à espera e esperança de conhecer mais e mais poetas plurais no Brasil. Há, certamente, outros poetas trabalhando nestas águas. Esta postagem nao se quer "exaustiva", completa, "totalitária". É permeada por exemplos consistentes, incitando à pesquisa das outras vozes espalhadas entre o Oiapoque e o Chuí. O/A poeta brasileiro/a precisa encontrar sua voz, mas não no sentido que se dá à expressão, de encontrar seu "estilo de escrita", ou seja, sua maneira própria de obliterar a própria voz. Há que se encontrar a VOZ, aquela que soa.

Estes não são os únicos nem últimos, e esta frase é mais que apenas um desejo ou uma profecia.

26.6.08

À CONTRA-FOGO

um ideograma junino

{chamas e nem ouves um quase verso desta fogueira toda cinza ao vento
/tensão contínua em direção ao nada/ mergulho falso em mar dilacerado/ e com as mãos pensas segues vagaroso/ não vendo o que é oferecido ao largo/ como a nenhum olho é dado perceber
(que dor nem riso valem o esquecer) }




24.6.08


BORRAR FRONTEIRAS
A história de vida e a prática artística do poeta Ricardo Domeneck surpreendem.
Como seus versos - " subject to objections/ chance and choice".
Com dois livros imperdíveis, CARTA AOS ANFÍBIOS e A CADELA SEM LOGOS, o poeta paulista, que vive atualmente em Berlim, agita a cena com suas invenções verbivocovisuais.



Ricardo Domeneck (foto de Roberto Borges)


Para conhecer melhor as realizações dele click aqui.

21.6.08

PHILA




Em 1985, Philadelpho Menezes organizou sua primeira mostra “poesia intersignos”, no Centro Cultural São Paulo. Foi o estopim da bomba que o condenou a um mundo de dificuldades que não o impediram de continuar sua obstinada realização poética.

São muitos feitos em quarenta anos de vida, até 2000. Sempre vivo na lembrança dos que o conheceram e o admiram, Phila completaria hoje 48 anos.

Para festejo, um sonzinho:


Nem o mármore, nem monumentos dourados
Têm vida mais longa que a palavra; o poema.
Aqui se tem mais brilho, afastam-se os enfados
De pedra, pelo tempo gasta, sem dilema.

E quando estátuas já são blocos do acaso,
Construções de pedra indo à terra com a guerra,
Não há bala ou fogo fugaz que abale o caso
De amor do poema co'a vida que ele encerra.

Contra a morte, contra o inimigo esquecimento,
Em busca de um espaço em branco no futuro,
É que trava sua batalha, seu sustento,
Vestindo a palavra, investindo contra o escuro.

Até que a eles a posteridade chegue,
Viverão juntos o poema e quem o pegue.

(Shakespeare, Soneto LV, em tradução de Philadelpho Menezes)

15.6.08

ARQUITETURA DOS SONS


Entrevista imprescindível de Flô Menezes a Humberto Pereira da Silva, na Trópico
Seguem uns trechos:

De toda forma, no tocante aos sons é preciso ser tão perspicaz quanto o gume duplo de uma faca com a qual não se sabe bem o que cortar: os sons podem portar um interesse espectral em si, mas nada serão se não estiverem contextualizados de modo consistente em uma obra musical, nos substratos de suas estruturas, em sua arquitetura.

Não há postura que seja radical “por demais”. Ou se é radical, ou não se atinge a raiz das coisas, como bem dizia o bom e velho Marx. Confunde-se, infelizmente, radicalismo com dogmatismo ou, pior, com sectarismo. A radicalização implica atingir o viés do alimento: a raiz. É dela que se nutrem os frutos.

O problema esbarra na autenticidade das atitudes estéticas, e a autenticidade se mede pelas condições dadas a tal ou tal exercício de um saber artístico. Se se tem acesso a certos tipos de informação (leia-se aqui: articulações sígnicas), deve-se exigir, então, certo grau mínimo de responsabilidade. Costumo “reduzir” a tipificação artística poundiana nos três tipos mais essenciais, aplicáveis ao fazer musical: mestria, invenção e diluição revelam-se, aí, como as três atitudes possíveis, e destas apenas as duas primeiras adquirem valor estético e autenticidade.

8.6.08

DEU LINHA



Difícil descrever a experiência de participar do espetáculo NEM UMA ÚNICA LINHA SÓ MINHA, que reuniu Ricardo Aleixo, Benedikt Wiertz e Alexandre Tripiciano no palco ontem, sábado, o7 de junho. Além do show de sincronia sonora e visual, a beleza da elaboração dos sentimentos e da técnica poética só confirmam o oriki para cantar: "tudo começa e acaba na cabeça".

OGUNHÊ!

4.6.08

DIFERENÇAS NA CULTURA BRASILEIRA


Onde o Brasil é primeiro mundo?

Num evento como Redes da Criação, no Itaú Cultural, em São Paulo.

Confira a programação e veja por si mesmo.

2.6.08

ARTE E TECNOLOGIA DE PONTA



O sempre surpreendente Inhotim, centro de arte contemporânea localizado em Brumadinho, Minas Gerais, abriga atualmente o impressionante trabalho The forty part motet, de Janet Cardiff . Canadense de Ontario, nascida em 1957, Janet demonstra fôlego em suas experiências . The forty part motet, de 2001, é um experimento de sincronia: instalação sonora construída em 40 canais a partir do moteto Spem in Alium nunquam habui, composto pelo inglês Thomas Tallis, em 1575, para os festejos do aniversário da Rainha Elizabeth 1ª.


O moteto é uma composição polifônica medieval para oito coros de cinco vozes. Em sua composição, Thomas Tallis trata de humildade e transcendência, questões importantes para o artista católico numa época em que a fé católica era reprimida pelo Estado soberano da Inglaterra. A peça é conhecida como uma das mais complexas obras polifônicas para o canto coral.


A partir da monumental realização de Tallis, Janet Cardiff registrou a voz de cada um dos cantores da Catedral de Salisbury utilizando microfones individuais. Trabalhou com vozes masculinas de baixo, barítono, tenor e uma voz soprano infantil. O moteto de Cardiff começa com os sons capturados dos momentos que antecedem o início da gravação da cantata. Esse tom informal da "preparação" das vozes transforma toda a apresentação solene. Além disso, o aproveitamento dos aparatos eletroacústicos promove um elaborado efeito de singularidade. O resultado é uma escultura sonora com duração de 14’7’’ em que podemos perceber detalhes das diferentes harmonias e combinações de vozes.


A extraordinária experiência de percorrer essa instalação evidencia como as poéticas da voz alcançam tempos e espaços sem fronteiras. A cantata de Cardiff/Tallis chama o participador a pensar com as pernas: enquanto caminhamos no tempo-espaço entre os 40 alto-falantes, ouvidos e olhos bem abertos pra o magnetismo das vozes que recobram nosso corpo. Tudo isso nos faz lembrar que ainda há muito que experimentar nas poétcas da voz, esse mundo de possibilidades tão antigo e tão pouco conhecido.




Ficha técnica:
Janet Cardiff – The forty part motet (2001)
Instalação sonora em 40 canais
Cantata pelo Salisbury Cathedral Choir
Gravação e pós-produção: SoundMoves
Edição de som: George Bures Muller
Produção: Theresa Bergne