Hoje é aniversário de Susana! Para comemorar a data, nada melhor do que ler um texto que ela escreveu para uma de suas aulas admiráveis.
A LETRA E A VOZ: LEITURA DE POESIA
Susana Souto
“Se o meu verso não deu certo
foi seu ouvido que entortou” (Drummond)
Falar em oficina de poesia já é um modo de pensar a poesia. É uma forma de conceber o poema como algo material, como um objeto que se constrói em uma oficina, objeto que é, portanto, fruto do labor humano, do engenho humano, desse recurso humano para conceber o mundo e tentar aproximar-se do outro: a linguagem.
A poesia foi/é, muitas vezes, pensada como o nosso exercício mais radical com a língua, é a busca das suas máximas potencialidades, é um modo de demorar-se na observação das palavras, olhando-as de vários lugares, movendo-as, virando-as, brincando com elas, jogando com elas. É uma forma, ao mesmo tempo, lúdica e altamente sofisticada de pensar a linguagem. Diz Augusto de Campos que “poesia é risco”. Diz Pessoa que o “Poeta é um fingidor”; Bandeira, que o “Poema é a nódoa no brim”; diz Drummond que é um “claro enigma”; para Maiakóvski, é “uma viagem ao desconhecido”; para Quintana, são “pássaros que chegam, não se sabe de onde, e pousam no livro que lês”; para João Cabral, o poema é “feito de antilira, escrito em antiverso”. Há muitas formas, principalmente poéticas, de definir a poesia.
Fiquemos com esta: “A poesia é o máximo de tensão entre o som e o sentido”. Essa definição é de Paul Valéry, poeta e crítico francês, que morreu na metade do século XX. O poema, nessa definição, é concebido como algo mais próximo da música do que da escrita. É, principalmente, trabalho com o som. Assim, a poesia exige a leitura em voz alta. Torna-se relevante, no contato com o poema, não apenas a leitura silenciosa, em que os nossos olhos se movimentam e que se tornou regra desde a consagração e difusão do livro como principal suporte do texto.
O nosso corpo é convidado a participar do texto poético. Lemos em voz alta, ouvimos o poema e ouvimos também a nossa voz modificada na leitura do poema. Ao ler em voz alta, atuamos como um leitor que imprime uma voz – a sua - ao texto e diante desse texto descobrimos outras vozes em nós, ouvimos as possibilidades de nos inventarmos outros, de sermos diversos, palavra que tem o mesmo étimo de divertimento.
O som e sua tensão com o sentido fazem do texto poético um texto, em alguma medida, intraduzível. Mas intraduzível aqui não é uma condenação dos que lêem o que chamamos de tradução. Intraduzível é inseparável. Quando alteramos os sons, na tradução, alteramos também os significados, uma vez que, no poema há um esforço para torná-los indissociáveis, construindo, assim, a tensão. Podemos, então, pensar que, quando um tradutor escreve uma boa tradução não é porque ele recuperou algo conteudístico de um poema (até porque falar em forma e conteúdo no caso da lírica é impossível a partir da definição que estamos examinando, linguagem é forma), é porque ele conseguiu deixar-se surpreender pela forma do poema primeiro/lido que o levou a escrever um outro texto também maravilhoso. Penso aqui na tradução belíssima que Manuel Bandeira fez de E. E. Cummings:
it may not always be so; and i say
that if your lips, wich i have loved, should touch
another’s, and your dear strong fingers clutch
his heart, as mine in time not far away;
if on another’s face your sweet hair lay
in such a silence as i know, or such
great writhing as, uttering overmuch
stand helplessly before the spirit at bay;
if this should be, i say if this should be –
you of may heart, send me a little word;
that i may go unto him, and take his hands,
saying, Accept all hapiness from me.
Then shall i turn may face, and hear one bird
Sing terribley afar in the lost lands.
cummmings
SONETO
Não será sempre assim... Quando não for,
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio ou no maior
Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:
Se tal acontecer, fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
“Goza a ventura de que já gozei.”
Depois, desviando os olhos de improviso,
Longe, ah, taõ longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.
Bandeira
E agora, ficamos com Bandeira ou com Cummings? Com os dois. Outra delícia da poesia: não precisamos eliminar nenhuma das partes em nossas escolhas. Podemos ficar com todas, com os melhores, com os que quisermos. O poema de Bandeira nos leva a Cummings, e nos leva também a pensar sobre a sonoridade da língua portuguesa, sobre a sonoridade da língua inglesa, sobre os desafios de compor imagens similares com línguas diferentes. Tradução é traição, diz o famoso ditado, porque não é possível ser fiel em um diálogo com outro texto; a fidelidade pressupõe que a língua é um código e, como tal, fechado e acabado, com elementos linearmente correspondentes em outra língua, outro código. Como algo bastante complexo, em contínua transformação e contradição, a língua não permite essa mera transposição, ela impõe a recriação, que pode transformar-se em recreação, em jogo, em divertimento, para tradutores e leitores. Aliás, podemos mesmo pensar que todo leitor é um tradutor, na medida em que transpõe, com as operações significativas de mudanças, de deslocamento, de recriação/recreação, o texto lido, que passa, assim, a ser o texto escrito.
Esse exercício de leitura/reescritura, de deslocamento do texto e também de nós é operado na poesia e nos pede tempo. O tempo de convívio com o poema é outro.
Valéry nos diz que, "... É preciso confessar que o personagem sempre apressado em acabar, que denominamos nosso espírito, tem um fraco pelas simplificações desse gênero, que lhe dão todas as facilidades para formar numerosas combinações e julgamentos, para desdobrar sua lógica e desenvolver seus recursos retóricos, para realizar, em suma, sua função de espírito da maneira mais brilhante possível" (1991:62).
António Gedeão também o disse em versos:
Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.
Anda o cego a tocar La Violotera,
e eu a vê-lo e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar
Que riso perto, que aflição distante,
que ínfima débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta draga carburante,
rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?
Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele, e a mim.
Na leitura do poema, o nosso espírito/corpo, “esse personagem apressado”, é convidado/convocado pela sedução das palavras a demorar-se em seu convívio, a pensar a palavra em sua ambigüidade, em sua sonoridade, em sua plasticidade. Instaura-se uma relação diferente com o tempo. Saímos do ritmo da urgência, do pragmatismo, e entramos em um tempo lento, no tempo da fruição artística. Mas não como fuga do que chamamos de realidade e sim como possibilidade de ampliarmos/problematizarmos o que chamamos de realidade:
“A poesia exercita nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer as diferenças e a descobrir as semelhanças. O universo é um tecido vivo de afinidades e oposições. Prova vivente da fraternidade universal, cada poema é uma lição prática de harmonia e de concórdia, embora seu tema seja a cólera do herói, a solidão da jovem abandonada ou o naufrágio da consciência na água parada do espelho”. (Paz, 1993: 147)
Pensar uma estratégia de leitura para a poesia é enveredar por caminhos que se bifurcam em muitos outros. Mas tomemos um deles. O primeiro passo do leitor de poesia é estranhar, é ver como não óbvio o que é tido como óbvio: “Para ver as coisas devemos, primeiramente, olhá-las como se não tivessem nenhum sentido: como se fossem uma adivinha”, nos ensina Guinzburg.
Isso nos leva aos formalistas russos, estudiosos do início do século XX que buscaram investigar o que seria o específico literário. Eles não conseguiram definir o que havia em todos os textos ditos literários e só nesses textos, ou seja, eles não conseguiram definir o que era a “literariedade”, mas estabeleceram uma função para arte: a arte deveria provocar em seus receptores, na concepção formalista, a “desautomatização perceptiva”. Mas o que seria essa desautomatização?
As palavras, pensavam os formalistas, estão gastas, como de resto todas as coisas em nosso cotidiano. Elas, as palavras, estão reduzidas, no dia a dia, a uma função, a um uso pragmático, que restringe as suas possibilidades. Caberia, então, ao poeta, ao escritor de literatura, revitalizá-las, dar vida às palavras, recuperar o seu poder de sedução sobre os nossos sentidos, fazendo-as evocar mais do que o trânsito cotidiano de mensagens lhes pede. Como no verso de Bandeira: "fazer o leitor, satisfeito de si, dar o desespero".
Guimarães Rosa, um autor que escreveu poema em prosa - ou o contrário, se vocês preferirem - disse em uma entrevista que ele não era um revolucionário das palavras, e sim um reacionário, que o que ele gostaria era de ser lembrado como um reacionário, pois o que de fato ele queria era recuperar a força original da palavra, quando ela ainda era confundida com a coisa.
Nessa afirmação do criador de Riobaldo, podemos perceber uma visão mágica das palavras. Mas como fazer literatura - escrevendo ou lendo - sem considerar que as palavras são portas para paisagens inusitadas? Que elas, as palavras, podem nos dar mais do que até então pedimos que elas nos dessem? Como não apostar que elas são pássaros, que elas são pedras, que elas nos dizem do que sentimos, que elas arquitetam o que sonhamos, que elas, às vezes, são mais saborosas do que os sabores que descrevem? Como explicar que elas nos levam às lágrimas, ao medo, à esperança? Não há algo de mágico em encontrar, em um poema escrito há vários séculos antes de nossa leitura, aquilo que sentimos hoje?
Outro caminho em busca da poesia e de formas outras de leitura que ela instaura é a recuperação da voz. Um leitor de poesia é convidado a experimentar as palavras também na sonoridade que elas evocam, ouvir as suas reverberações. Podemos, assim, vê-las/ouvi-las de modos inusitados, surpreendentes. Um poema, não raro, é um convite à música e à dança. Podemos lê-lo em voz alta, várias vezes, até percebermos a sua musicalidade, até construirmos um ritmo que confunde a nossa voz com os sinais que riscam a página em branco.
Constituindo-se como som mais do que como letra, um texto poético nos transporta para um período em que as palavras eram principalmente faladas/ouvidas, não escritas/lidas. O olho não é suficiente para apreender a multiplicidade da palavra poética. Outros sentidos são acionados por esse texto, especialmente a audição. Leitores de poesia estão próximos da música, a menos mimética das artes, ou seja, a que nos distancia da pretensão de esgotar racionalmente o mundo. A repetição dos sons, a leitura repetida em voz alta do poema também nos salva do tempo finito, linear, também nos leva, momentaneamente, ao tempo circular, ao tempo da eternidade, a um tempo vivido pela divindade, aproximando-nos assim dos deuses e distanciando-nos do ordinário, do cotidiano.
A leitura de poesia partiria, portanto, de um cuidado com as palavras. Um debruçar-se sobre as palavras, um debruçar-se cuidadoso, sonoro, visual, atento. Desconfiado, que açula a nossa atenção, isca-a com o risco, para lembrarmos João Cabral de Melo Neto.
Este é o convite deste encontro. Um convite para que aqui possamos lidar com esse objeto simbólico, resistente a simplificações: a palavra poética. Um convite ao risco de sairmos dos lugares fixos, nos quais os sentidos parecem para sempre determinados. Ouçamos uma outra voz ainda, para lembrarmos da dúvida que a poesia instaura e para concluir esse aviso aos navegantes com um convite à navegação. Com vocês, Luís Dantas, poeta popular nordestino:
“Nem toda água é corrente,
Nem todo adoçado é mel,
Nem tudo que amarga é fel,
Nem todo dia é sol quente;
Nem todo cabra é valente,
Nem toda roda tem veio,
Nem todo matuto é feio,
Nem todo mato é floresta,
Nem todo bonito presta
Nem todo pau dá esteio.
............................................
Nem todo golpe é em cheio
Nem todos livros eu leio
Nem todo trilho é estrada
Nem toda gente me agrada
Nem todo pau dá esteio.”
Leiam, divirtam-se, surpreendam-se.
Referências bibliográficas